Foto: Daniel Croce
O surgimento do Living Colour em meados dos anos 80 coincidiu com um período em que o rock estava finalmente olhando para além de suas próprias fronteiras em busca de inspiração. Naquele tempo, quase que em desprezo à própria história, o rock era tido como uma forma de arte branca, e os poucos roqueiros negros em atividade eram vistos como párias. Feito óleo e água, Aqua Net e cabelos afro não se misturavam.
Até que veio “Vivid”, em maio de 1988, derrubando a barreira racial e apresentando uma amálgama sonora enraizada no hard rock, mas que incorporava funk, hip-hop, acentos jazzísticos e operísticos, inventividade e uma consciência social que só quem sentiu na pele as injustiças da vida é capaz de desenvolver. E tudo isso com o endosso de Mick Jagger, que descobriu a banda no lendário CBGB e nela acreditou desde o começo: o líder dos Rolling Stones produziu-a, ajudou-a a assinar com uma gravadora e até levou-a para a estrada, como atração de abertura da turnê de “Steel Wheels” (1989).
Deixemos de lado o fato de a presente turnê que celebra os trinta anos de “Vivid”, na qual o cultuadíssimo álbum é tocado na íntegra, ter chegado à América Latina com um ano de atraso. Por aproximadamente duas horas, Corey Glover (vocal), Vernon Reid (guitarra), Doug Wimbish (baixo) e Will Calhoun (bateria) fizeram os quase dois mil presentes em um Circo Voador lotado refletirem sobre seus valores, visando à formação de cidadãos mais livres e conhecedores de si próprios e, portanto, mais consistentes ao encarar as questões políticas strictu sensu que atingem a sociedade como um todo.
Parece exagerado, mas não é. O Living Colour sempre foi isso: excelência musical acrescida do caráter revolucionário de letras que falam de suicídio (“Middle Man”), racismo (“Funny Vibe”), culto às celebridades (“Glamour Boys”) e outros questionamentos da superestrutura do sistema. Em meio a performances individuais arrebatadoras e bem-humoradas — o exagero no gestual, nas caras e bocas e até mesmo nas cores do figurino, em total contraste à ausência de um pano de fundo ou de um arranjo de palco mais elaborado —, canções que servem de índice para o receio do Estado, e, por isso, exercem o grande papel político da música.
A tônica do que nos aguardava foi dada logo após a abertura com “Preachin’ Blues”, original de Robert Johnson relida no bom “Shade” (2017): “gostaríamos de dedicar este show à Marielle Franco”. E tome aplausos. Nesse clima, a faixa seguinte “Who Shot Ya?” poderia muito bem ter sido cantada “Who Shot Her?”, em referência à pergunta que não quer calar há mais de um ano.
A voz de Malcolm X em sua famigerada Mensagem às Massas prenunciou a íntegra de “Vivid”, começando por “Cult of Personality” e seu adágio de libertação — “Only you can set you free”, diz a letra — imprensada entre menções a líderes do bem e do mal — Mussolini, Kennedy, Stalin e Gandhi — ornada com um dos solos de guitarra com wah-wah definitivos. Mais adiante, em “Open Letter (To A Landlord)”, uma amostra do alcance vocal de Glover num acapella introdutório como poucos na sua idade ainda têm condições de apresentar. Isso antes de o baixo pulsante de Wimbish assumir o primeiríssimo plano deste hino anti-gentrificação: “You’ve got to fight for your neighbourhood”. Tanto a abordagem como o otimismo são quase taoistas. E o que falar de “Which Way to America”, a derradeira de “Vivid”, executada com uma fúria quase tribal? O virtuosismo é de fazer qualquer músico iniciante largar o instrumento e a atemporalidade do que é cantado é digna de reflexão.
No bis — passado um longuíssimo solo de bateria e percussão de caráter quase dispersivo —, uma trinca campeã de “Time’s Up” (1990): “Love Rears It’s Ugly Head”, “Elvis is Dead” e “Type”. Na esteira, um uníssono “Ei, Bolsonaro...” — completem mentalmente —, que já virou meio que praxe em shows nacionais ou internacionais na capital carioca e em todo o Brasil. É como diz a máxima: “Sejamos realistas, exijamos o impossível.”. Do contrário, segundo Platão, continuaremos pagando o preço pela não participação política, que é sermos governados por quem é inferior.
Texto originalmente publicado na Rock Brigade Magazine em 17 de junho de 2019.
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