Não é todo cantor septuagenário que pode bater no peito e se orgulhar de ainda fazer jus a um título recebido na juventude. Menos ainda são os roqueiros dos anos 60 e 70 que sobreviveram aos excessos com uma lucidez que os permitia fazer um balanço crítico e coerente da própria história. Glenn Hughes, “The Voice of Rock” (“A Voz do Rock”), é tudo isso e muito mais desde que foi anunciado vocalista do coletivo The Dead Daisies. De volta aos palcos para uma turnê mundial, ele arranjou um tempinho na agenda para bater um papo sobre a atual fase e, em especial, sobre “Holy Ground”, disco lançado em janeiro passado que certamente estará na lista dos melhores do ano de muita gente boa (e nem tão boa assim). Boa leitura!
Transcrição: João Marcello Calil
Fotos: Divulgação
Marcelo Vieira: O mundo foi apanhado de surpresa quando você foi anunciado como vocalista do The Dead Daisies. Mesmo com sua carreira solo consolidada e lançando ótimos álbuns, você topou encarar essa. O que o atraiu na proposta a ponto de levá-lo a dizer sim?
Glenn Hughes: Há dois anos e meio encerrei uma turnê [Classic Deep Purple Live] que durou três anos e com enorme sucesso. Achei que era o momento de mudar, pois precisava de algo diferente. Então me encontrei com David Lowy [guitarrista e fundador do The Dead Daisies], em Los Angeles, e conversamos a respeito de que eu compusesse algumas músicas para a banda, apenas com a finalidade de ver como funcionaria, e funcionou muito bem. Em seguida iniciamos as gravações de “Holy Ground”.
MV: É muito diferente a dinâmica do The Dead Daisies em comparação com sua banda solo?
GH: Completamente, mas adoro. Sempre há algo de diferente, seja no Black Country Communion, na minha carreira solo ou agora no The Dead Daisies, porém, é justamente essa dinâmica que me mantém animado.
MV: Pude ver de perto o quanto funcionou bem a parceria com Doug Aldrich quando vocês vieram no Rio de Janeiro em 2016. Você poderia falar um pouco a respeito desse guitarrista e colega de banda?
GH: Doug é um bom amigo; eu o conheço há 25 anos. E, sim, é uma ótima parceria. Eu o amo como pessoa e pelo excelente músico que é.
MV: “Holy Ground” saiu em janeiro e certamente estará na lista dos melhores do ano de muita gente, e, por que não, até mesmo na minha. Como você o definiria?
GH: Dramático. É um álbum dramático. Suas letras exprimem a superação do medo e da virada de página, da prática do desapego, da renúncia àquilo que não mais nos serve. Embora tenha sido escrito antes da pandemia, e o ouvimos somente agora, vemos que retrata bem esse cenário! [Risos] Para mim, a virada de página e a superação do medo são particularmente importantes para nós todos.
MV: Como se dá a relação dessa dramaticidade com o título (“Solo Sagrado”)?
GH: O “Solo Sagrado” pode ser o que você desejar. Para mim, é recuperação, a volta por cima. Estou em recuperação há trinta anos. “Solo Sagrado” é todo lugar que piso. Sou feliz e grato por ainda estar fazendo o que faço, sendo capaz de enxergá-lo em qualquer lugar e momento. [Risos]
MV: No último mês vocês iniciaram a Like No Other World Tour. Como foram os shows até agora?
GH: Incrivelmente bons. Extraordinariamente fortes. Os fãs têm sido muito receptivos. Casas lotadas, ótimo clima. Dá uma sensação incrível para que estejamos juntos no mesmo palco; é fantástico!
MV: Rolou alguma emoção ao reencontrar o público após tanto tempo sem tocar ao vivo?
GH: Sem dúvida. Estávamos separados há dezoito meses e, de repente, estamos no mesmo local. Realmente foi uma emoção tremenda, sabe? É como se todos fôssemos um.
MV: A turnê leva o nome de uma das melhores músicas do álbum e uma das mais legais que você já gravou: “Like No Other (Bassline)”. Você poderia discorrer um pouquinho sobre essa música?
GH: Doug e eu a compomos no verão de 2019. É uma música com groove. Sempre que estamos tocando ao vivo em estúdio, tenho um microfone a meu lado pronto em caso de pintar alguma ideia para a melodia vocal. Gravamos a música na primeira tomada. Sei que se chama “Like No Other”, mas “Can you feel my bassline?” (“Podes sentir minha linha de baixo?”) apenas saiu, foi muito espontâneo. Quando ouvimos essa parte depois, decidimos que se chamaria “Like No Other (Bassline)” [Risos]. Além do mais, é uma ótima faixa para ser tocada ao vivo, pois tem um groove fantástico.
MV: Completamente diferente de “Like No Other (Bassline)”, mas igualmente brilhante é “Far Away”. O que inspirou a letra tão profunda dessa música?
GH: Foi minha volta por cima e meu reencontro comigo mesmo. Navegando pelo oceano em direção à costa, aportando em um novo mundo, deixando outro para trás, e sendo muito grato por isso. Como você pode ouvir na letra, sou eu tomado de gratidão por ainda poder estar aqui fazendo o que faço; é uma expressão de total gratidão por ainda estar vivo e ser capaz de alcançar tantas pessoas quanto possível com meu rock ‘n’ roll. É uma música muito importante e gratificante para mim, como também é para o repertório do The Dead Daisies.
MV: É a sua favorita no “Holy Ground”?
GH: Sim, “Far Away” e “Like No Other (Bassline)” são as minhas favoritas, mas “Unspoken”, a primeira música que escrevi, também é especial para mim e por extensão para a banda. Essas três músicas, você sabe... Enfim, todas [do álbum] são ótimas! [Risos].
MV: Há planos de trazer o The Dead Daisies para a América do Sul, em especial o Brasil?
GH: Sim. Estamos conversando com alguns promoters daí. Nossa ideia é ir no segundo semestre de 2022. Esperamos que isso aconteça!
MV: Tem alguma boa lembrança das vezes que esteve no Brasil?
GH: Só lembranças legais. Nunca vivi um momento ruim no Brasil. Não é de agora que minhas turnês sempre incluem datas nesse país. Tenho grandes amigos e os fãs mais incríveis do mundo. Vocês, brasileiros, são notáveis. E como é incrível, gratificante tocar para vocês.
MV: Falando em Brasil, boa parte do seu catálogo vem sendo lançada em CD por aqui, incluindo os três discos do Trapeze e o seu primeiro voo solo (“Play Me Out”). Para você, qual a importância de esse catálogo estar acontecendo a essa altura e em meio ao advento das plataformas digitais?
GH: É muito importante, porque tenho muitos fãs no Brasil e eles me vêm pedindo esses relançamentos há uns dez anos. É bom ver que, agora, finalmente estão saindo.
MV: Podemos dizer que “Play Me Out” seria como o Deep Purple soaria caso a banda não tivesse se separado em meio à turnê do “Come Taste the Band”?
GH: Não sei dizer. “Play Me Out” é um álbum que David Bowie iria produzir comigo e, no último segundo, decidiu trabalhar com Iggy Pop. É um álbum de soul, não de hard rock, e é muito experimental, cheio de groove, meio teatral até. Não tem nada a ver com o Deep Purple.
MV: É difícil imaginar os caras do Purple tocando um som tão funkeado?
GH: Impossível, eu diria. [Risos].
MV: Em dezembro fará 45 anos que Tommy Bolin nos deixou. Você sempre faz questão de tocar no nome dele, ressaltando como era amigo e um músico talentoso. Para você, ele foi um dos melhores da história?
GH: O músico mais subestimado com quem já toquei, além de um querido amigo. Amo muito o Tommy. Jeff Beck amava o Tommy. Todo mundo o amava. Ele era um ótimo guitarrista.
MV: O que o diferenciava dos outros deuses da guitarra dos anos 70?
GH: Ele não tinha medo de pisar fora do quadrado do rock tradicional e trazer música latina, reggae, groove e funk, e misturar tudo com o rock, o mesmo que eu. Minhas influências são o soul e o rock, mas Tommy era muito influenciado pela música latina.
MV: Stevie Wonder certa vez se referiu a você como “meu cantor branco favorito”. Quero saber se a recíproca é verdadeira: seria ele o seu cantor negro favorito?
GH: Com certeza. Conheço o Stevie há 45 anos. Nós nos conhecemos no estúdio e daí nos tornamos grandes amigos. Sempre foi muito gentil. Encontramo-nos anualmente e sempre em janeiro. Somos muito próximos. É como se fosse meu mentor, e eu o amo muito. Para mim, é o maior cantor que existe.
MV: Quais serão os próximos passos de Glenn Hughes?
GH: Mais canções. Estamos preparando um novo álbum do The Dead Daisies, que, espero lançá-lo — cá entre nós [Risos] — no final deste ano ou talvez no começo do ano que vem.
MV: Dois álbuns em um ano seria algo incrível! Para encerrarmos, qual é sua mensagem para os fãs brasileiros?
GH: A todos vocês, meus fãs brasileiros, que têm estado comigo por tanto tempo, saibam que são muito importantes na minha vida, porque toda vez que escrevo uma música, penso em como soaria nos palcos do Brasil e torço para que vocês entendam a mensagem que lhes quero transmitir. Brasil, vocês são o número um para mim, e eu os amo muito.
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