ENTREVISTA: Rubão, Jeff e Toni explicam o rock multirracial pesado, malcriado e provocativo d’O Maldito

 


A banda O Maldito surgiu em 2017 com uma proposta musical eclética e uma mensagem provocativa, unindo referências que vão do metal clássico ao punk e até influências da MPB. Com letras que abordam temas como conflitos existenciais, hipocrisia e ódio, Rubão (baixo e vocal), Jeff (guitarra), Toni (guitarra) e Koreia (bateria) se destacam por sua postura crítica e contestadora, trazendo à tona suas perspectivas intelectuais para enriquecer a profundidade das composições. 

Tal mistura de influências sonoras e literárias forma a essência do que o quarteto descreve como “rock multirracial pesado, malcriado e provocativo”. Através de músicas como “Circo Armado” e “Soco Na Cara”, destaques de seu recém-lançado disco homônimo, O Maldito canaliza sua revolta e traça seu caminho no cenário do rock independente no Brasil, focado em ampliar seu público e levar seu som único para ainda mais pessoas. Conheça pra ontem!


Por Marcelo Vieira

Fotos: Isabela Mariana (@isacloud)


Como surgiu O Maldito e quais foram as principais influências musicais e intelectuais no desenvolvimento do som e da mensagem da banda?

Rubão: O Maldito surgiu em 2017, após a entrada do Toni em um projeto que já tínhamos desde 2006. Musicalmente, somos uma amálgama de referências que vão desde o metal clássico até o stoner, thrash, prog, punk e até mesmo MPB. Nossas referências literárias vêm de nossos interesses individuais e de nossas leituras de mundo. Além disso, o Jeff é professor de Filosofia e História, o que também influencia nosso trabalho.


O que significa a descrição “rock multirracial pesado, malcriado e provocativo”?

Jeff: Somos uma banda de metal brasileira, e como Oswald de Andrade disse no seu “Manifesto Antropofágico” (1928), nós, latinos, somos mestres em consumir, processar e devolver ao mundo as influências estrangeiras. É isso que buscamos fazer com o heavy metal. O “multirracial” destaca a pluralidade em um estilo predominantemente tocado por brancos. Já o “provocativo” reflete a essência do que queremos apresentar, que é uma extensão de nossas personalidades e histórias. Afinal, a vida provoca todos nós constantemente, e o que nos resta é provocar de volta.


Como é o processo de criação de uma música d’O Maldito? Quem compõe as letras e a música?

Jeff: Tudo começa com um riff. Em seguida, desenvolvemos a estrutura e, por último, a letra. Às vezes, a letra pode ser o ponto de partida, mas o riff “matador” sempre dá o tom. Não importa se ele estará no início, no fim ou no meio da música, o riff é fundamental, inspirado pela escola [Black] Sabbath de composição. As músicas desse disco foram concebidas de forma analógica no estúdio, através da tentativa e erro. Gostamos desse processo porque traz a sonoridade ao vivo desde o início.



As letras de vocês abordam temas como conflitos existenciais, hipocrisia e ódio. Qual a importância de trazer esses assuntos para o rock? Vocês acham que o rock está alienado de alguma forma?

Rubão: O rock é vasto e pode abordar uma infinidade de temas. Na nossa percepção, talvez enviesada, o rock sempre foi provocativo, contestador e marginal. Foi assim que nossa geração absorveu esse estilo. Abordar esses temas, considerados indigestos por muitos, é uma forma de chamar a atenção para questões que vivemos no dia a dia, mas que nem todos percebem ou compartilham dessa visão. Para nós, é uma forma de unir o amor à música com a expressão das nossas opiniões.

Jeff: O rock precisa e deve abordar a realidade, além de seu lado lúdico. A arte é uma ferramenta poderosa e atemporal de intervenção. Queremos estimular um olhar crítico sobre a realidade em que vivemos.

Rubão: O mundo não pertence apenas aos que têm os dentes mais brancos; ele também é dos sorrisos amarelos que permeiam nosso cotidiano. O rock continua vivo e pulsante, mas com menos visibilidade, pelo menos no Brasil. Isso pode ser uma desvantagem comercial, mas nos dá liberdade, já que não precisamos seguir as tendências que dominam 90% do cenário musical.


“O país do futuro tem um passado inventado.” Essa frase da letra de “Circo Armado” é bastante provocativa. O que ela significa para vocês? Poderiam explicar mais sobre a mensagem dessa música e como ela se encaixa no momento atual?

Rubão: Essa frase é uma crítica ao que nos ensinaram sobre a formação do nosso país. Acreditamos que o Brasil é o berço das fake news, e nossa história precisa ser revisada, especialmente no que diz respeito às injustiças históricas que invisibilizaram as pessoas que realmente construíram esse país com sangue e lágrimas. “Circo Armado” é uma crítica ao “jeitinho brasileiro”, à corrupção, aos políticos e à arrogância de acharmos que somos melhores em algo indefinido. Essa letra tem uns 10 anos, mas soa incrivelmente atual. Nos sentimos como palhaços, e o circo chega a cada dois anos, em outubro.

Jeff: “Mudam-se os atores, mas o teatro sempre é o mesmo.” A história ainda é contada pelas elites, e as redes sociais estão infestadas de “especialistas” em tudo.


Quando ouvi o verso “Escolha entre os sujos, emporcalhados e imundos”, de “Soco Na Cara”, lembrei da famosa citação de Lemmy Kilmister: “Todos os políticos, sem exceção, são filhos da puta no fim das contas”. Muitas músicas do álbum parecem refletir esse ódio à classe política. O que o povo pode fazer para mudar isso, e como o rock pode ajudar a despertar uma nova consciência?

Rubão: Lemmy sabia do que falava. A política sempre foi a arte do conchavo, e é quase impossível fazer algo sem atender aos interesses da “governabilidade”. O poder está sempre nas mesmas mãos, nas mesmas famílias. Para manter a ilusão de representatividade, elegem ex-atletas, mulheres-frutas e outros, destacando ainda mais o teor caricatural dos nossos políticos. Diante disso, aceitamos a corrupção e os absurdos como normais. Precisamos discutir política como projeto de nação, não como torcida de futebol. Dividir para conquistar sempre funciona, e o rock tem o poder de provocar uma conscientização crítica dessa realidade.

Jeff: O Estado foi criado para perpetuar o sistema, desde as capitanias hereditárias. Nossa anarquia nas letras reflete essa reação à classe política que apenas mantém o Estado burguês.



Vocês adaptaram “Versos Íntimos” (1912), de Augusto dos Anjos. Como surgiu essa ideia e como o poema, marcado por um pessimismo existencial, se encaixa na proposta da banda e no contexto do álbum? 

Jeff: Augusto dos Anjos é uma grande influência lírica para a banda. Ele representa a coragem além do “homem cordial” que domina nossa sociedade. Sua escolha de palavras em “Psicologia de um Vencido” (1912) e as imagens que ele cria com seus versos são uma grande inspiração para nós. Adaptar “Versos Íntimos” foi a realização de um desejo antigo e estamos muito orgulhosos do resultado.


Como rolou a participação do tecladista Derek Sherinian na faixa “Inês é Morta”?

Toni: Derek postou um vídeo gravando uma participação para outra banda, e eu perguntei como funcionava para ele gravar com a gente. Ele foi super solícito e, em menos de uma hora, já tinha nos enviado a gravação. Fizemos alguns ajustes, e tudo se encaixou perfeitamente. Foi uma experiência muito interessante, especialmente do ponto de vista da produção.


Das demais canções do disco, alguma se destaca pela mensagem ou pela história que vocês gostariam de compartilhar?

Jeff: “Demonofagia” é uma faixa especial. O refrão é inspirado em uma famosa frase de Antônio Abujamra: “A vida é sua, estrague-a como quiser”. Abujamra, com seu programa “Provocações” (2000-2015), introduziu uma geração ao pensamento crítico. O título é um neologismo retirado de uma banda antiga nossa, Demonophagy. A música fala sobre a impermanência da vida e os traumas internos que todos carregamos.



Sobre a capa do disco, ela reflete o conteúdo? E quais “socos na cara” são os mais urgentes hoje?

Jeff: A capa está cheia de significados. O espelho representa quem somos, independentemente das ilusões que abraçamos para suportar a vida. O “soco na cara” é uma metáfora para aquilo que poucos têm coragem de falar. Isso reflete nossa proposta musical e as influências de poetas e filósofos como [Friedrich] Nietzsche, [Paulo] Leminski, Machado de Assis e Clarice Lispector. A ideia do espelho veio de Cristiano Soares, um artista fenomenal que admiramos.


Como vocês veem a cena do rock independente no Brasil atualmente? Quais são as maiores dificuldades e alegrias de trabalhar nesse meio?

Jeff: A cena rock e metal no Brasil sempre teve artistas fantásticos, mas muitos não sobrevivem por falta de estrutura, especialmente financeira. Nós mesmos enfrentamos isso, já que todos na banda têm outras profissões. Muitos projetos interessantes sucumbem por falta de apoio. O Brasil é a periferia do capitalismo, o que gera uma competitividade burra. Precisamos aceitar que o rock e o metal nunca serão populares e começar a fortalecer nosso próprio circuito. Um bom show de metal ainda é capaz de causar um grande impacto.


Quais são os principais objetivos d’O Maldito para o futuro? O que está nos planos para divulgar o trabalho e alcançar um público maior?

Toni: Queremos tocar para o maior número de pessoas possível e continuar compondo músicas. Estamos batalhando por nosso espaço há algum tempo, mas só agora sentimos que temos uma base sólida.



Site oficial: https://bandaomaldito.com/

Contato para shows: bandaomaldito@gmail.com


Comentários

  1. Que entrevista massa!!! Como é bom saber que tem organismos pulsantes e pensantes na nossa sociedade!!!

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